Os barulhos estavam guardados nas casas. Era hora de jantar.
Aqui e além uma carro passava; um cão ladrava; uma lambreta dava gás e apenas insistentemente os pássaros chilreavam.
Enquanto isso ele acabara de chegar a casa, pousara as chaves no móvel da entrada, juntamente com o saco de pão quente, e a passos apressados mergulhara no sofá. Após segundos com a cara enfiada nos assentos estofados a pele, voltou-se, fixou o olhar no tecto, sorriu, olhou o relógio e num repente levantou-se. Durante o dia, por várias vezes, ocupara os pensamentos nela. Não sabia porquê. Era inusitado aquele sentimento que o fazia procurar o desconhecido, mas o facto é que não era a primeira vez que acontecia e mais uma vez, lembrava a intrigante frase: "Cuidado Mr. Zé. Nunca desejes a vizinha do 6º esquerdo. Entre a voluptuosidade esconde um segredo para o qual não estás preparado."
Ao entrar no prédio, depois de ter ido comprar o pão, tinha reparado que as janelas do andar misterioso estavam abertas, e de novo a vizinha lhe assoberbara as ideias. Naqueles breves segundos, deitado no sofá, decidira que lhe ia tocar à campainha. Para o bem ou para o mal, estava decidido.
Foi ao espelho do quarto, observou-se, arranjou o cabelo farto com os dedos, alisou a camisa, endireitou as dobras nas mangas e perfumou-se. Deu um novo olhar de revés, sorriu e pensou, piscando o olho: não te resiste Zé, convencido do caralho. E saiu porta fora.
No elevador, a ansiedade apertava-lhe e secava-lhe a garganta. Nunca mais chegava...
A porta abriu e resoluto caminhou em direcção à entrada e tocou à campainha. Aguardou. Um silêncio absoluto apoderou-se do andar. Voltou a tocar. Levou as mãos aos bolsos e aconchegou o seu mais que tudo. Sentiu um formigueiro nervoso por todo o corpo. Raios! Raios! Raios, logo hoje que me decidi e ela não está! E se tem homem? E se é ele que vem à porta? E se... um trinque ouviu-se e a porta abriu devagar. Uma mulher alta, loira e de olhos azuis balbuciou algumas palavras que ele não percebeu. Tentando emendar o imperceptível, perguntou:
- A senhora, está?
- Sinhora, sim, está. Quem falar?
Era claramente de Leste, não apenas pela fisionomia, mas também pela pronúncia.
- Zé. Sou o Zé, vizinho do 2º andar, queria dar uma palavrinha à Senhora.
- Momento, por favor.
Fechou-lhe a porta e, depois do que para ele parecera uma eternidade, voltou e cedeu entrada, encaminhando-o por um corredor até à sala de estar. Convidou-o a sentar-se com um gesto de mão, e disse:
- Sinhora já vem. Momento. - e abandonou a sala.
Sentou-se. Esfregou uma mão na outra, tentando secar a transpiração causada pelo nervosismo e olhou em redor. Havia poucos móveis. Alguns quadros na parede. Duas ou três jarras com flores naturais, invulgares e coloridas. Não havia porta-retratos. Cores alvas e linhas direitas. As janelas estavam abertas, tal como tinha observado anteriormente, e as cortinas esvoaçavam por elas fora. Um cão aproximou-se dele. Assustou-se com a súbdita e silenciosa aproximação do animal, mas logo rápido se recompôs e já fazia carícias à fêmea. Era uma "ela".
Mais uma vez, e já lhes perdera a conta, olhou o relógio. Nunca mais vem, pensou.
Deitou novo olhar sobre a disposição dos móveis e adereços da sala, tentando reconhecer algo familiar ou que lhe proporcionasse identificar a dona do sítio. Em vão.
Levantou-se acariciando as orelhas da cadela que de imediato lhe seguiu os passos, como que a guarda-lo. Foi até à janela, segurando com a mão as cortinas que se escapavam para a varanda.
Estranhamente, e riu-se, questionando se haveria algo de certo naquela cena toda... e, estranhamente, uma vez mais, no prédio do lado oposto da rua, uma mulher, à janela, de máquina fotográfica com a mira apontada na sua direcção. Que estranho... foi quase um déjà vu.
Caminhou até à beira da varanda e olhou para baixo. Na rua o mesmo vagar acontecia. O ocaso chegava, e no seu interior, um turbilhão de ideias fustigava-lhe a paciência e aturdia-lhe o corpo. Do outro lado a mulher desaparecera, e agora a cadela lambia-lhe os dedos. Aguenta Zé! Aguenta!
( a continuar...)