O dia terminava. Estivera quente e agora que o sol se punha, nas casas, as janelas estavam abertas, escancaradas, deixando o ar ameno entrar, e a azáfama do interior sentia-se e ouvia-se.
Entretanto ele tinha entrado no prédio e aguardava a chamada do elevador. A Dª Cândida, uma simpática septuagenária do 1º andar queixava-se dos bandalhos que lhe enchiam a caixa de correio com publicidade, apesar do aviso colado mesmo à frente dos olhos. Perguntava pela família, pela vida, pelo trabalho, pela esposa que não tinha: Ai é verdade, o menino não é casado, esqueço-me sempre! Mas sempre perguntava! Contava dos netos e dos cursos no estrangeiro, dos filhos ausentes, das noras... bem, das noras nem vale a pena falar, dizia ela, e das receitas de culinária que lhe havia sugerido e se já experimentara.
E lá se despediu com um beijo babado na face e um rebuçado. Sim, dava-lhe sempre um rebuçado de goma, duro, intragável, mas dado com a maior das alegrias e vontades.
Ele sorriu-lhe. Devolveu-lhe o beijo, baixando-se, acolheu o rebuçado na palma da mão, sacado do porta-moedas preto de mola, e agradeceu recebendo de volta um piscar de olho azul e um sorriso matreiro de quem dá uma guloseima, à socapa, a um garoto. Ela voltou costas girando no seu tacão preto do sapato, comprado talvez há décadas, nas lojas da Baixa, e ele ficou ali parado em frente ao elevador, abanando a cabeça e vendo-a sumir-se por detrás da porta que dava acesso às escadas. Percurso que ela fazia questão de tomar todos os dias por forma a exercitar as pernas.
A porta do elevador abriu e ele entrou pensativo. Levantou a mão para marcar o andar e hesitou. Baixou o braço, encostou-se à parede do elevador e relembrou as palavras: "Cuidado Mr. Zé. Nunca desejes a vizinha do sexto esquerdo.". E mais depressa pensava, tão rápido o número seis seleccionava. À medida que subia, revia os números e as pessoas que no respectivo andar moravam. Um suave solavanco no elevador deu sinal de que tinha chegado ao destino. A porta abriu e mais uma vez hesitou. Já a porta corria a fechar, quando ele com a mão a deteve, e abriu de novo. Saiu.
Olhou para a direita e voltou-se de frente para a porta do 6º esquerdo. Um cheiro característico sentia-se no ar, aliás como em cada um dos andares, e todos eles diferentes. Deu dois passos em frente e parou. Sorriu para si e mais uma vez lembrou: "Cuidado Mr. Zé. Nunca desejes a vizinha do sexto esquerdo. Entre a voluptuosidade esconde um segredo para o qual não estás preparado...." Raios! Mas porque raios não lhe saía esta frase da cabeça?! Parvoíce, Zé. Esquece lá isso! Chamou o elevador e desceu.
Na rua, a poente, o céu misturava o vermelho com o laranja, antevendo o calor para o dia seguinte. No prédio do lado oposto da rua, à janela, uma mulher, de máquina fotográfica pousada no parapeito olhava fixamente em frente, como que estivesse à espera de ver alguém a aparecer. E ali permaneceu por algum tempo, correndo a mão dentro da camisa meio desabotoada que trazia vestida...
( a continuar... )